Assombrações platônicas (esboço de um projeto)

Often it’s a question of seeming rather than being modern

Seeming is almost as good as being, sometimes,

And occasionally just as good.

Ashbery, Commotion of the birds

A sobrevivência de Platão é algo tão indiscutível na tradição filosófica que Whitehead conseguiu eternizá-la de forma sucinta e elegante em uma frase que rapidamente se tornou um clichê ao afirmar que a filosofia consiste em “uma série de notas de rodapé a Platão”1. Não é um exagero, portanto, dizer que desde os tempos mais antigos Platão tem assombrado a história da filosofia. Poucas vezes, porém, se analisa efetivamente esse caráter de “série de notas de rodapé” da tradição filosófica, ainda mais se considerarmos a filosofia contemporânea2. Em alguns casos essa sobrevivência do Platonismo é explícita (seja por convergência ou divergência). Ninguém duvidará que Aristóteles3, Cícero4, Plotino5, Proclo6, Santo Agostinho5, Marsilio Ficino7, Leibniz8, Kant9, Schelling10, Hegel11, Kierkegaard12, Nietzsche13, para ficar em alguns exemplos, estão em diálogo explícito com os problemas platônicos. Mas as coisas começam a ficar mais confusas em momentos mais recentes. Com a profissionalização da atividade filosófica e o desenvolvimento da figura do scholar, fica-se com a impressão que as leituras de Platão tem se voltado mais para o aspecto histórico e/ou filológico do que uma relação propriamente filosófica14. Não queremos com isso diminuir esse tipo de trabalho, fundamental para a reflexão filosófica — ainda mais considerando que não estamos propondo algo distinto disso neste projeto. Queremos marcar apenas uma espécie de diferença que se instala no seio da atividade filosófica a partir da sua profissionalização ao longo do século XIX que culmina na, ainda pouco discutida e compreendida apesar de constantemente referida, divisão entre filosofia e história da filosofia. Dito isso, ainda assim, encontraremos uma série de autores que tiveram um diálogo fundamental com o pensamento platônico na construção das suas próprias filosofias. Entre estes, Whitehead é o autor do século XX mais facilmente associado ao platonismo, jamais escondendo sua influência, como se pode ver ao longo de sua principal obra Processo e Realidade15. Entre os contemporâneos de Whitehead, mas com uma relação menos explícita e intensa, pode-se apontar Edmund Husserl16, Paul Natorp171, Martin Heidegger18, Walter Benjamin19, Hannah Arendt20, Hans-Georg Gadamer21 e Simone Weil22 como filósofos que se engajaram com o pensamento platônico ao longo de suas obras. Ao longo da segunda metade do século XX podemos também mencionar autores como Wilfrid Sellars23, Iris Murdoch24, Jacques Lacan25, Luce Irigaray26, Gilles Deleuze27, Jacques Derrida28, Anne Carson29, Martha Nussbaum30, Jacques Rancière31, Giorgio Agamben32, Alain Badiou33 , Slavoj Zizek34, Kojin Karatani35 que construíram suas obras a partir de diálogos (mais ou menos frequentes) com Platão. Mesmo no início do XXI a presença do platonismo continua se insinuando por meio de nomes como Jan Zwicky36, Iain Hamilton Grant37, Ray Brassier38 e Reza Negarestani39. Essa enumeração, certamente não exaustiva, serve como sinal de que os problemas e conceitos que Platão elaborou ainda seriam de alguma forma relevantes. É preciso deixar claro, porém, que não se trata de dizer que tais autores são platonistas num sentido que se mantiveram fiéis aos conceitos e ideias elaborados por Platão em seus diálogos (mesmo que fosse possível aderir a um dogmatismo simples no caso de Platão, algo que duvidamos muito). O que queremos dizer é que há uma sobrevivência tanto de questões elaboradas e desenvolvidas ao longo da obra de Platão como de algumas das ferramentas conceituais que ele desenvolveu para lidar com elas40. A relação com esse platonismo não é, portanto, de aderência, mas de uma construção do pensamento filosófico que passa por um engajamento (muitas vezes críticos) com seus textos e seu pensamento.

Gostaríamos, porém, fazer mais do que simplesmente enumerar filósofos que lidam e dialogam efetivamente com a tradição de questões platônicas. Nossa intenção nesse projeto será levar a sério o gracejo whiteheadiano (como ele mesmo levava) e tentar entender em que medida a influência de Platão é absorvida na filosofia contemporânea. Acreditamos que com uma tematização explícita dessa presença, uma série de questões que permeiam a filosofia contemporânea recebam uma dimensão histórica que não apenas ilumina as raízes históricas de certos problemas, como permite situar de modo mais inteligível algumas das soluções propostas para esses problemas hoje em dia. A partir da análise das diversas recepções do pensamento platônico seria possível produzir um solo comum que permitisse analisar as divergências e convergências que existem na filosofia contemporânea. Essa questão mais ampla, porém, é imediatamente bifurcada pois para entender o que do platonismo sobrevive é necessário também compreender de que maneira ele sobrevive. Uma pergunta auxiliar que se põe, é, portanto: o que significa a sobrevivência de certas problemas e conceitos filosóficos?

1 Whitehead, Alfred North. Process and reality. Nova Iorque: The Free Press, 1978. p. 39. Ignora-se, nesse contexto, que Whitehead efetivamente via isso não apenas como um gracejo, mas como uma espécie de programa a ser desenvolvido em sua própria filosofia como pode ser observado ao se retornar ao contexto dessa citação.

2 Excluindo os trabalhos exegéticos que procuram examinar as leituras explícitas de filósofos contemporâneos sobre o pensamento de Platão, as poucas exceções que conhecemos se focam na relação de Platão com a tradição fenomenológica-hermenêutica (tendo Heidegger como eixo central). Cf. Sallis, John. Platonic legacies. Nova Iorque: SUNY Press, 2004; Hyland, Drew. Questioning platonism: continental interpretations of Plato. SUNY Press, 2004; Kim, Alan. Plato in Germany: Kant, Natorp, Heidegger. Sankt Augustin: Academia Verlag, 2010 e Kim, Alan (org.). Brill’s companion to German platonism. Leiden: Brill, 2019.

3 Cf. Gerson, Lloyd P.. Aristotle and other platonists. Ithaca: Cornell University Press, 2005.

4 Cf. Cicero, On the nature of gods / Academica. Michigan: Harvard University Press, 1933.

5 Cf. Gerson, Lloyd P.. From Plato to platonism. Ithaca: Cornell University Press, 2017.

6 Cf. Idem, ibidem.

7 Cf. Celenza, Christopher S., “Marsilio Ficino” in: Zalta, Edward N. (org.). The Stanford Encyclopedia of Philosophy. São Francisco: Metaphysics Research Lab, Stanford University. 2017. Disponível em: <https://plato.stanford.edu/archives/fall2017/entries/ficino/&gt;. Acesso em: 06 out. 2019.

8 Cf. Davidson, Jack. “Leibniz: the last great christian platonist” in: Kim, Alan (org.). Brill’s companion to German platonism. Leiden: Brill, 2019.

9 Cf. Baum, Manfred. “Kant and Plato: an introdution” in: Kim, Alan (org.). Brill’s companion to German platonism. Leiden: Brill, 2019.

10 Cf. Schelling, F. W. J.. “Timeu (1794)”. Epoché, vol. 12, n. 2, pp. 205-248, primavera 2008 e Grant, Iain Hamilton. Philosophies of nature after Schelling. Londres: Continuum, 2008. pp. 26-58.

11 Cf. O’Neill Surber, Jere. “Hegel’s Plato: a new departure” in: Kim, Alan (org.). Brill’s companion to German platonism. Leiden: Brill, 2019.

12 Cf. Kierkegaard, Søren. O conceito de ironia. Petrópolis: Editora Vozes, 2006.

13 Cf. Bett, Richad. “Nietzshce and Plato” in: Kim, Alan (org.). Brill’s companion to German platonism. Leiden: Brill, 2019.

14 Cf. Domingues, Ivan. Filosofia no Brasil: legados & perspectivas. São Paulo: Editora UNESP, 2017 e Arantes, Paulo. Um departamento francês de ultramar. São Paulo: Paz & Terra, 1994.

15 Whitehead, Alfred North. Process and reality. Nova Iorque: The Free Press, 1978.

16 Cf. Kim, Alan. “Phenomenological platonism: Husserl and Plato” in: Kim, Alan (org.). Brill’s companion to German platonism. Leiden: Brill, 2019.

17 Natorp, Paul. Teoria das ideias de Platão: uma introdução ao idealismo – volume I. São Paulo: Paulus, 2012 e Natorp, Paul. Teoria das ideias de Platão: uma introdução ao idealismo – volume II. São Paulo: Paulus, 2012

18 Cf. Heidegger, Martin. Platão: o sofista. Rio de Janeiro: Forensi Universitária, 2012.

19 Cf. Benjamin, Walter. Origem do drama trágico alemão. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

20 Cf. Arendt, Hanna. “Philosophy and Politics”. Social Research, Vol. 57, n. 1, pp. 73-103, primavera 1990.

21 Cf. Gadamer, Hans-Georg. A ideia do bem entre Platão e Aristóteles. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.

22 Cf. Weil, Simone. A fonte grega. Lisboa: Edições Cotovia, 2006.

23 Cf. Sellars, Wilfrid. “The Soul as Craftsman: an Interpretation of Plato on the Good” in: Philosophical perspectives: history of philosophy. Atascadero: Ridgeview Publishing Company, 2017.

24 Cf. Murdoch, Iris. A soberania do bem. São Paulo: Editora UNESP, 2013.

25 Cf. Lacan, Jacques. O Seminário, livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.

26 Cf. Irigaray, Luce. Speculum, de l’autre femme. Paris: Minuit, 1974.

27 Cf. Deleuze, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2011. pp. 259-271.

28 Cf. Derrida, Jacques. A farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 2005.

29 Cf. Carson, Anne. Eros, the bittersweet. Champaign: Dalkey Archive Press, 1993.

30 Cf. Nussbaum, Martha. Loves knowledge. Nova Iorque: Oxford University Press, 1990.

31 Cf. Rancière, Jacques. O desentendimento. São Paulo: Editora 34, 1996.

32 Cf. Agamben, Giorgio. A potência do pensamento. Belo Horizonte: Autêntica 2015.

33 Cf. Badiou, Alain. L’être et l’évènement. Paris: Points, 2018.

34 Cf. Zizek, Slavoj. Less than nothing. Londres: Verso Books, 2012.

35 Cf. Karatani, Kojin. Isonomia. Durham: Duke University Press, 2017.

36 Cf. Zwicky, Jan. Alkibiade’s love: essays in philosophy. Montreal: McGill-Queen’s University Press, 2015.

37 Cf. Grant, Iain Hamilton. Philosophies of nature after Schelling. Londres: Continuum, 2008. pp. 26-58.

38 Cf. Brassier, Ray. “That Which is Not: Philosophy as Entwinement of Truth and Negativity”. stasis, vol. 1, n. 1, 2013. Disponível em: <http://www.stasisjournal.net/index.php/journal/article/view/60/94&gt;. Acesso em: 10 out 2019.

39 Cf. Negarestani, Reza. “What Is Philosophy? Part Two: Programs and Realizabilities”. e-flux, vol. 69, jan 2016. Disponível em: <https://www.e-flux.com/journal/69/60608/what-is-philosophy-part-two-programs-and-realizabilities/&gt;. Acesso em: 10 out 2019.

40 O que também nos levaria a perguntar sobre a própria natureza dessa assombração. Sobre isso, conferir o pequeno texto “In what sense is philosophy time-bound” onde começamos a ensaiar esse problema: https://thespeculativemonad.wordpress.com/2018/05/03/in-what-sense-is-philosophy-time-bound/