Sobre o valor de um perfil na internet – comentários a O eu na internet de Jia Tolentino

Se o que interessa é falar de desorientação, não é nenhuma surpresa que o início dessa investigação aconteça a partir de uma das formas mais comuns de sentir desorientação no mundo contemporâneo: o perfil (avatar) internético. De modo que, é preciso avisar, vamos deixar em suspenso outros tipos de análise. Não primo aqui pela exaustão, mas pela análise desse campo específico, que certamente ficaria ainda mais complicada se levasse em conta inúmeras outras formas de desorientação (sem contar também a mistura entre essas desorientações). Além disso, partimos aqui de uma certa perspectiva simplificadora sobre os próprios perfis internéticos. Não pretendo dar conta de todas as variações possíveis desse tipo de perfil, nem de partir de dados hiper-fundamentados. O esforço aqui depende de um ponto de partida que é a própria impressão. A ideia aqui é ver se conseguimos, a partir de um esforço tateante, tocar em certas estruturas mais gerais (mas talvez, por sua abstração, que acabem ficando caricaturais demais). Uma outra coisa que não pretendo desenvolver aqui (mas que é importante sempre marcar, para evitar mal entendidos) é que em nenhum momento afirmo que essas estruturas que descrevo são “causadas pelos desenvolvimentos técnicos” ou que “a tecnologia da internet é responsável pelas formas de organização social que vingam nelas”. Seria necessário seguir todo um outro fio para elaborar isso, mas podemos marcar, como princípio metodológico, que se essa estrutura se desenvolveu dessa forma é porque certas relações sociais já se organizavam a partir de algo semelhante aos perfis. Nos contentaremos aqui em descrever essas estruturas sem tentar traçar detalhadamente como ela se deu.

A primeira coisa que é preciso marcar sobre a internet é que sua estrutura, ainda que móvel em sua história (emails, fóruns, listas, blogs, redes sociais), tem se estruturado majoritariamente a partir de perfis que habitamos e que são o nosso móvel nesse mundo — o que não significa que a forma perfil não possa ser diferenciada fato dos perfis serem anônimos ou não, por exemplo. Um perfil que é o nosso email será diferente do perfil que criamos em um fórum. Assim como também podemos ter perfis diferentes nas mesmas redes sociais e habitá-los de formas diferentes. Ainda assim, é sempre a partir deles que nos comunicamos com outras pessoas na internet. Isso não quer dizer que haja uma forma pura de nós mesmos que exista antes do perfil (deixemos essa questão em aberto), apenas que para dar conta dessa forma de expressão específico precisamos entender também as dinâmicas desse veículo.

Se pudermos definir esses perfis, podemos dividir seus tipos de ação em basicamente três Isso pode ser visto tanto nas grandes redes sociais, que não apenas se resumem a interações (curtidas, comentários e compartilhamentos), como também no varejo online. Quando visitamos a amazon (ou falo apenas de mim), talvez também possamos compreender nossos movimentos a partir dessa trindade: vemos os produtos (damos testemunho à sua existência e temos dados coletados nesse movimento), compramos os produtos (uma forma de reproduzir sua existência, já que eles saem do site e passam a existir em nossas vidas mundanas) e reagimos a eles (comentamos, seja na própria loja online, seja em outros espaços, o que achamos desse produto).

O que um perfil faz? Talvez seja possível resumir seu funcionamento a três operações (ou melhor: seu corpo é definido a partir dessas três operações):

  1. Análise (leitura, curtida)
  2. Reprodução (assentimento, compartilhamento)
  3. Produção (reação, comentário)

Isso não significa que temos todos os movimentos possíveis, mas uma espécie de hipótese sobre as operações que serão base de todos os outros tipos de operação (ou seja, essas operações iniciais seriam recombinadas de n-maneiras). Também não me comprometo completamente com o que está entre parêntesis. Talvez seja uma forma apressada demais de delimitar essas operações de uma forma esteticamente agradável. O que importa é, ter um solo inicial para que correções possam ser elaboradas. Como disse já José Mourinho citando um filósofo famoso:“the truth is in the whole”.

Não chega a surpreender, portanto, que, como Jia Tolentina marca em seu O eu na internet, “as plataformas mais relevantes são construídas em torno de perfis pessoais”. O que significa dizer que não apenas a construção do perfil seja a finalidade dos usuários dessas redes, mas que a construção de perfil (e aqui entra a coleta de dados) é a fonte de rendimentos das empresas que constroem essas redes sociais orientadas a partir da figura de perfil. Na medida em que os usuários usam as redes, refinam seus perfis, estes acabam se tornando cada vez mais particulares, cada vez mais repletos de especificidades que, de um ponto de vista mais ampliado, que considera uma massa de perfis, acaba produzindo uma série de informações sobre hábitos e práticas médias que podem ser revendidas (sem intermediação do produtor de dados, já que o valor do dado está na sua forma massificada) para outras empresas que tem capital suficiente para pagar por esses dados. 

O curioso (algo a ser elaborado em algum momento) é que apesar da semelhança, o valor que vemos do ponto de vista individual (no ponto de vista do usuário) nos perfis e o valor que as empresas enxergam neles tem algo de equívoco. Se certamente existe valor nos perfis do ponto de vista individual (ou seja, se um perfil “pode ser trocado por algo”, algo que vemos, por exemplo, no caso de influencers e também no desejo de certas pessoas se tornarem influencers), esse valor não coincide com o valor que as empresas que estruturam as redes obtém quando os perfis são elaborados e construídos pelos usuários.

Os usuários enxergam os perfis como um espaço de valorização da sua identidade que pode ser potencialmente convertido em inúmeros tipos de ganhos (seja sociais, seja econômicos, seja políticos). O esforço de construir uma narrativa, de repetir certos trejeitos, certos bordões, certos tipos de ‘postagens’, a exposição de certas habilidades e até a produção de conteúdo que pode atrair outras pessoas (voluntariamente ou não), acaba criando uma certa imagem do que somos enquanto o que podemos ser (ou seja, somos o que podemos ser, produzir etc). O que isso quer dizer é que o perfil não apenas é algo, um conjunto de traços na internet, mas ele se constrói como algo que potencialmente pode seguir sendo esse algo (se vou me associar a um certo perfil não é porque ele fez algo uma vez, mas porque ele poderá continuar fazendo isso). Se o que se quer obter com isso são alianças políticas, amizades ou simplesmente dinheiro, não importa (e não há juízo moral aqui), mas parece que as redes acabam delimitando o perfil como um espaço de potencial conversão para o usuário pelo tipo de promessa que ele tem em mente. É preciso marcar que isso não vale apenas para conversões monetárias. Posso até estar interessado em construir coletivamente certos ideais utópicos, mas ainda assim, se for mediada pela internet, a forma de realizar o sonho de associação também passa pela imagem de possibilidade que meu perfil constrói (por exemplo: é preciso que eu seja confiável, o que não deixa de ser uma forma de cultivo de uma virtude de convertibilidade: “essa pessoa é confiável, ou seja, na hora que o bicho pegar ela vai estar lá do meu lado”).

Mas se as empresas constroem uma rede que estimulam a nossa participação, nosso engajamento, por uma série de artifícios (culturais, de design ou algoritmicos), se elas nos fazem acreditar que podemos extrair algo dessas estruturas (independe aqui se os usuários se engajam nesse movimento de modo voluntário ou involuntário, de modo cínico ou ingênuo), para elas não têm nenhum valor em si as possibilidades singulares que os perfis vendem. Uma personalidade da internet não tem valor pelo que ela pode produzir, mas pelo tanto de engajamento que ela pode gerar (não estamos falando nada demais). O que quero dizer com isso é que, ainda que as empresas precisem que nós joguemos seu jogo, que esse jogo seja jogado é a condição para que a coleta de dados em escalas massivas possam ser realizadas. Ou seja, a construção dos perfis, sua especificação e suas interações são parte integral da construção de valor para as empresas, mas simplesmente por produzirem dados sobre seus usuários que podem ser postos em comparações em bancos de dados enormes. Há, portanto, uma importante sobreposição entre o valor do perfil para a empresa e para os usuários que é o que faz essa máquina girar.

O que há de interessante nisso é que esse tipo de construção voltada para uma estrutura que já existia acaba tendo uma série de efeitos que tornam o cultivo do ‘veículo’ perfil — aquilo que deveria ser a nossa forma de expressão nesse ambiente — a própria finalidade das redes. Alguém com mais segurança no seu Marxismo 101 diria que há algo aí semelhante à passagem da subsunção formal para a subsunção real que Marx identifica no processo constitutivo do capitalismo. O que acontece então quando aquilo que era meio das redes se torna uma finalidade? É esses efeitos que Tolentino parece conseguir descrever em seu texto sobre a internet e que nos permitem ter um primeiro solo sobre em que consiste uma das formas da nossa desorientação atual. Lá ela irá distinguir cinco grandes efeitos que analisa ao longo do ensaio. São eles:

  1. Distorção do senso de identidade
  2. Encorajamento da supervalorização das opiniões
  3. Maximização do senso de oposição
  4. Degradação da compreensão de solidariedade
  5. Destruição da noção de escala.

Esse texto já foi longe demais (e nem chegou onde gostaria de chegar — embora, ao mesmo tempo, o que escrevi acima só foi possível por conta desse texto), então vamos nos contentar com um final anticlimático em que simplesmente comentamos cada um desses problemas discutidos pela Tolentino. Talvez deveria tentar enlaçar de forma conclusiva esses problemas, mas o fato de que eles ainda são campos a serem explorados me deixa mais tranquilo em deixar o final aberto para continuar na próxima essa investigação.

Distorção do senso de identidade

A primeira forma de desorientação, e que é talvez a tese central do texto (visto que de alguma forma se relaciona com todas as outras desorientações), é que há uma distorção do senso de identidade na internet. Já comentamos sobre isso um pouco aqui, mas em sua análise tem um outro elemento que talvez seja melhor elaborado semana que vem, quando comentarmos o próprio Goffman, principal referência da Tolentino. A partir da ideia de Goffman de nossas vidas são performances, e que estamos sempre criando representações teatrais para um certo público (seja conscientemente ou não), ela irá marcar que, se essa ideia não é em si problemática, a situação atual tem alguns elementos que a conduzem para uma estrutura dessa dinâmica que podemos chamar de patológica. A estrutura de Goffman, descrita pela autora, é bem simples: vestimos máscaras/performances para grupos diferentes (ou seja, somos pessoas diferentes em situações diferentes). Mas não apenas os públicos mudam (o que nos permitem ser outras pessoas), como há inclusive momentos que podem ser pensados como um bastidor, em que podemos relaxar e diminuir a tensão (ou estariamos apenas performando com uma intensidade diferente, o que também produz uma variação sobre o tipo de representação que fazemos). O que isso significa, como diz Tolentino, é que “o eu não é uma coisa fixa e orgânica, mas um efeito dramático que emerge de uma performance.”

A situação fica complicada na vida online. Tolentino menciona primeiro a maneira como essas redes se estruturam. Elas nos forçam cada vez mais a navegar nas redes sempre ligados a um perfil — os infinitos “conectar com google/facebook” que avistamos a todo momento — e que acabam coletando nossos dados para que depois eles possam ser refletidos de volta para nós sob a forma de produtos que gostaríamos de comprar ou até mesmo opiniões e notícias que queremos consumir. Apesar de sabermos que não somos apenas isso, ter o tempo inteiro na barra lateral de certos sites os livros que você quer comprar (mas que nem sempre pensou explicitamente) não deixa de ser cansativo e de nos fazer, aos poucos, pela insistência acreditar um pouco que até somos aquilo (“de fato, esse livro poderia me ajudar”). Mas além disso, a estrutura das redes sociais, o fato de que os públicos são todos comprimidos numa lista genérica do facebook de contatos (ou de seguidores no twitter e instagram) acaba apagando as fronteiras que demarcariam as diferentes performances que podemos ser. Tudo o que fazemos nessas redes sociais que permeiam cada vez mais nossas vidas, acabam se dirigindo a um público absolutamente abstrato que pode conter tanto pessoas da minha vida profissional, da minha vida política, da minha vida amorosa, da minha vida familiar etc. Ainda que algumas redes prometam a compartimentalização disso (linkedin, para trabalho, instagram para crushes, facebook para qualquer coisa e twitter para interesses) o fato é que na prática essas distinções acabam não funcionando, já que um perfil se liga a outro de modo muito fácil. Qualquer compartimentalização rapidamente se derrete. Mas além disso, e talvez isso seja o mais grave, essas estruturas acabam destruindo a ideia de um bastidor onde podemos relaxar das performances que ficamos sustentando o dia inteiro. Como estamos do lado dos nossos celulares o tempo inteiro, a tendência é que uma rápida olhada no celular seja o suficiente para nos pôr no modo de performance mesmo que estejamos no conforto da nossa cama. Todos já sentiram essa exaustão esquisita que vem do simples fato de navegarmos um pouco as redes sociais, sem que a gente precise fazer muita coisa (muitas vezes sem que a gente precise até comentar/interagir, já que a própria leitura já é uma operação suficientemente ativa para nos obrigar a saber como performar a reação ao que estamos lendo).

Encorajamento da supervalorização das opiniões

Isso nos leva para o segundo ponto, pois se a internet é um espaço de performance, a opinião acaba sendo uma das principais formas de agir nesse espaço. É claro que essa rede técnica não está condenada a ser esse espaço de super-valorização dos perfis pessoais, mas do jeito que ela se encontra estruturada hoje em dia (em torno de redes sociais), com suas inúmeras técnicas de rapto de atenção, aliado a uma precarização crescente do tempo na economia capitalista contemporânea, viver a partir dos perfis parece ser uma forma de resolver alguns impasses contemporâneos. Como sublinha Tolentino, a maneira como o tempo de trabalho tem ocupado cada vez mais o tempo de existência, torna cada vez mais difícil nos engajarmos social e politicamente com nossas comunidades. Simplesmente temos cada vez menos tempo para nos envolver em causas políticas (que acabam exigindo uma disponibilidade de tempo — o que hoje em dia geralmente significa dinheiro suficiente para poder não trabalhar o tempo inteiro), mas não só. Já que nem mesmo nossos familiares e amigos conseguimos ver com a frequência que desejamos. Diante dessa ausência de tempo acabamos cedendo às possibilidades de interações rápidas e picotadas que as redes sociais oferecem. Se não temos tempo para ter uma conversa contínua, sempre podemos ter aquelas conversas que duram o dia inteiro no zap, mas que são pontuadas por momentos de silêncio em que estamos trabalhando ou ocupados com o que quer que seja. Também é o caso de que a maior parte dessas interações nem sempre exigem que estejamos focados. Ninguém vai ver você respondendo as mensagens de zap de modo distraído, meio automatizado (desde que você consiga simular a atenção), mas se você fizer isso ao vivo as pessoas vão reclamar ou ficarem putas (como quando temos um amigo — ou quando nós somos esse amigo — que fica com a cabeça no celular durante encontros presenciais). Mas não se trata aqui de moralizar a questão (insisto), pois se essa forma de socialização prolifera, é justamente por conta da maneira como o mundo produtivo consome nosso tempo. E é por isso que me parece extremamente certeiro a análise de Tolentino sobre a supervalorização das opiniões. Não é apenas que a infraestrutura técnica seja a causa desse mundo, mas ela permite que, nesse mundo, nós ainda consigamos sentir que fazemos algo. Daí que muitas vezes, acabamos nos resignando a fazer algumas pontificações no facebook ou no twitter sobre algum assunto político, quando prefeririamos estar engajados localmente na situação em questão. Isso também não significa que não podemos nos organizar efetivamente pela internet. Mas se falamos em termos de organização, isso geralmente também nos exigirá um tipo de atenção que nem sempre o mundo do trabalho nos permite, nos fazendo tender (ou ser obrigados a substituir) um engajamento mais trabalhoso e que demande atenção, por um mais descontínuo (mas imediatamente gratificante?) que cabe na nossa disponibilidade de tempo. A questão se complica, porém, quando essa substituição por falta de disponibilidade (e esse “quando” não é algo que aconteceu em algum momento, parece antes um “quando” que a todo momento vem acontecendo de novo das mais variadas formas) se converte em forma de ação primária. Quando a pontificação passa a ser aceita como uma forma de ação, uma forma de interferir no mundo. Mas repito, não é que o problema seja falar na internet, pontificar (afinal, assim como Tolentino fala isso, eu também preciso aceitar que eu não estou fugindo desse circuito ao falar o que tou falando), mas acreditar que essa forma de ação seja um substituto adequado para outros tipos de ação. E isso é algo que pode ser visto se voltarmos a pensar nos termos que falamos inicialmente. Que tipo de efeito se gera de opiniões? Na maior parte das vezes os efeitos não são os mesmos de formas efetivas de organização, mas acabam sendo, nosso eterno schadenfreude, mais engajamento sob a forma de opiniões. Reações, concordâncias, debates, refutações, celebrações. Várias formas de ‘opiniões’. E digo mais: opiniões não precisam ser apenas “falas sobre determinados assuntos de um determinado ponto de vista”, entendo opinião de uma forma até exageradamente ampla que inclui boa parte do conteúdo que se produz na internet, desde fotos e imagens que se posta no instagram pra dar conta para os outros das andanças da sua vida pessoal alegre e incrível até as insuportáveis análises de conjuntura que pipocam em todas as redes (e quanto mais pessimista melhor!). Mas isso não precisa, de novo, ser visto de modo moralista. Pois numa rede estruturada dessa forma, dar sua opinião é uma forma de se permitir localizar nesse tipo de ambiente. Ainda que isso possa gerar uma cultura nociva, não é a opinião em si que é a causa disso (e por conta disso também que não há nenhuma solução mágica), ela é já uma espécie de solução para que os usuários possam facilmente se orientar nestes espaços. Se estão todos emitindo opiniões o tempo inteiro (independente da razão), acabo tendo uma forma bem simples e rápida de mapear o terreno e saber, por exemplo, quem devo seguir nessas redes sociais que agora habitamos.

Maximização do senso de oposição

Mas nem todos os tipos de opinião são talhadas na mesma. Se a Tolentino destaca as opiniões que tendem a maximizar um senso de oposição, isso me parece ser por conta dos efeitos que esse tipo de operação gera. Considerando a vastidão das redes sociais (potencialmente infinitos, como parece indicar a barra de rolagem em certo sítios), a opinião que partilha o mundo de modo binário (eu contra meus opositores) é uma das formas mais simples de se orientar. Primeiramente por apelar ao modo mais simples de “conhecer” as coisas, ou seja, por dividi-las em duas. Mas não apenas eu consigo produzir um tipo de corte bem simples, como esse tipo de corte, nessas redes, tem um efeito próprio a essas redes: que é criar um tipo de insatisfação que permite ainda mais afirmar o perfil que operou esse corte. De modo que não apenas as opiniões binárias acabam partilhando o mundo e produzindo uma forma de localização (“os bons” contra os “maus”), mas também acabam geralmente produzindo uma reação extremamente intensa (geralmente furiosa) sobre os méritos do corte original que alimenta com engajamento as redes sociais. O engajamento baseado em raiva, porém, acaba dando ainda mais atenção à pessoa que deu a opinião inicial (por conta das infraestruturas algorítmicas das redes sociais), fazendo com que os detratores dessa pessoa acabem contribuindo com uma amplificação ainda maior da posição que eles julgam ser simplificadora. Nem sempre isso é voluntário, mas é cada vez mais visível — sobretudo no campo político —, quando isso acontece. E não importa as pessoas ficarem cientes disso, se isso tem alguma força e acaba funcionando, é que a nossa relação com as redes — enquanto perfis — nem sempre é voluntária e consciente. Esse tipo de opinião acaba portanto sendo facilmente convertida em uma espécie de armadilha de engajamento. Um caso clássico é os influencers do tipo ‘teórico’ que postam um trecho completamente descontextualizado de uma obra, com uma legenda polêmica que vai fazer com que as pessoas que discordem disso acabem querendo ‘corrigir’ quem postou isso originalmente. Geralmente o efeito desse tipo de dinâmica é o emputecimento de quem tá querendo corrigir e a amplificação do alcance de quem fez a postagem original. Mas de novo, o que parece que há aí é já uma espécie de tentativa de solucionar e produzir uma localização neste ambiente a partir de um corte muito simples. Ainda que esse tipo de opinião que maximiza o senso de oposição seja hoje em dia uma estratégia super manjada, não podemos também negar que elas permitem uma localização rápida e fácil que permite que a gente saiba com quem estamos lidando (nem que seja para rejeitar a pessoa por ela apelar a esses estratagemas).

Degradação da compreensão de solidariedade

Um dos efeitos dessa binarização (me recuso a usar o termo PoLaRiZaÇãO) da realidade é o que Tolentino irá descrever como uma degradação da solidariedade. Não pretendo entrar no mérito do que seria uma solidariedade “boa” (embora talvez seja possível imaginar que a boa solidariedade tem a ver com uma espécie de doação de tempo, auxílio e recursos sem a criação de uma dívida — o que também não quer dizer que não se ganhe nada com a solidariedade, mas que talvez ela atravesse outros tipos de relações sociais não-econômicas), mas já se pode imaginar, a partir do que falamos, no que consiste a solidariedade a dessa infraestrutura que tem os perfis pessoais como centro. 

Se tudo é posto em termos de um eu que procura se valorizar, a primeira coisa que se pode falar é que uma série de questão que jamais seriam dignas de solidariedade em condições normais, acabam conseguindo ganhar alguma consistência pela estrutura da rede. Vemos demandas irreais e sem lastro — como, para pegar os exemplos da Tolentino, a acusação de que mulheres estariam sendo privilegiadas na sociedade, ou que brancos estão ameaçados — conseguindo ganhar alguma consistência e espaço que talvez não teriam fora das redes. Ações de solidariedade que julgamos razoáveis em outras condições (não-internéticas) conseguem aparecer apesar das condições de opressão (como demandas feministas ou antirracistas) por conta da força de organização dos oprimidos em questão (não entramos aqui no mérito das motivações) que consegue furar a invisibilização que é imposta à grupos oprimidos. Não parece ser o caso das demandas irreais, já que elas muitas vezes se confundem com as forças opressoras. O que parece acontecer na situação atual é que a produção de ações solidárias (e a visibilização delas) é extremamente facilitado nas redes. A consequência indesejada disso (sempre o gênio atende erradamente nossos pedidos) é que ações de solidariedade que pareciam não fazer nem sentido (e eram talvez descartadas e ridicularizada antes de ganhar tração) acabam conseguindo, por conta da estrutura vigente, ganhar algum espaço. Isso acontece pois não apenas as redes são centradas a partir dos perfis, como os perfis tendem a se agrupar em torno de identidades. Se talvez antes uma certa identidade não tivesse ocasião para se sentir ameaçada (ou mesmo para ser visibilizada enquanto identidade, por ser uma identidade que se confundia com uma normalidade), parece que a estruturação da rede a partir das identidades torna ainda mais fácil que alguns grupos que não tinham porque sentir-se ameaçados acabem se reunindo em torno de alguns predicados. Isso somado à maximização do senso de oposição que comentamos acima, parece uma receita perfeita para tornar qualquer identidade potencialmente em situação de perigo — ainda que essa sensação de ameaça não tenha qualquer lastro real.

Mas isso não é tudo, pois há também uma impossibilidade de dissociar a ação solidariedade online dos movimentos de visibilização e fortalecimento dos usuários que se solidarizam com tal ou tal causa. Não se trata, de novo, de uma questão moral aqui, mas de um dos efeitos da forma como se organizam essas relações sociais. Se esse ambiente se organiza a partir do ponto de vista dos perfis, parece que essa é uma das possibilidades inerentes a esta estrutura que na situação de solidarização quem acabe sendo beneficiado sejam os perfis pessoais dos envolvidos (tanto do solidarizado como do que se solidariza). Gera-se valor para os perfis, eles passam a ser bem avaliados pelos pares (nesse palco infinito em que os perfis não param de representar), mas o valor gerado nessa ação muitas vezes não consegue sair dessa esfera de valorização dos perfis entre si. A solidariedade acaba funcionando, portanto, como algo que até gera algo, mas não algo que tenha valor fora dessa dinâmica. Muitas vezes, apesar de gerar valor, ela permanece no que diz respeito à sua motivação inicial esvaziada, sem dar ao objeto de solidariedade os recursos, auxílios, companhia, troca que foram motivo desse movimento inicial. Claro que isso não significa que ações solidárias não sejam possíveis, que não se tenha casos de ações que conseguiram transcender a esfera da dinâmica de perfis. A ideia aqui é apenas marcar como a situação se complica a partir dessa estrutura.

Destruição da noção de escala

O último dos pontos tocados por Tolentino é talvez o efeito mais interessante, mas talvez o que eu ainda tenho mais dificuldades de comentar por lidar com questões que ainda estou longe de me sentir seguro. O que ela aponta é que essa estruturação a partir dos perfis acaba distorcendo as escalas que temos. E talvez é o ponto mais difícil de descrever pois é justamente aquilo que quero entender. Ela própria fala desse problema a partir de duas situações que ainda que me pareçam boas, apenas começam a encostar no problema.

A primeira situação tem a ver com a orientação das redes a partir dos perfis. Se tudo na internet, como já mencionamos, passa cada vez mais refletir os perfis (a partir da capacidade dos algoritmos de processarem seus dados e projetar uma imagem “média” da sua existência), isso ao mesmo tempo aumenta o engajamento (pois tudo está relacionado a você, tudo, em tese, te interessa), mas também acaba invisibilizando o mundo para além do perfil pessoal dos usuários. Ou melhor, aquilo que não está diretamente conectado ao seu perfil (seja por estar relacionado a nós ou por acontecer em espaço contíguo) passa cada vez mais difícil de ser acessado. E “perfil” entendido aqui no equívoco de “seu perfil pessoal”, ou seja, suas “contas” nos sites, mas também o perfil que é gerado pela coleta de dados e que passa a gerar uma projeção que refletiria seus interesses. A navegação fica talhada ao usuário. E de novo — não martelo isso a toa  — isso não pode ser entendido de forma moralista. Se consideramos o horizonte da internet, as amplas possibilidades, isso não deixa de ser uma forma de estabelecer um critério que torne esse mundo mais navegável.

Mas esse critério nos leva ao segundo problema mencionado por Tolentino. Pois não apenas os perfis passam a cada vez mais consumir coisas de acordo com seus interesses (conforme processados pelos algoritmos do facebook, amazon e google), mas nos desacostumamos de alterar as escalas que navegamos. Para retomar a ideia de Goffman e da representação do eu em palcos,  talvez os palcos não sejam apenas palcos em outros lugares, mas palcos em outras escalas. Isso não significa dizer que na vida ordinária conseguimos habitar a resolução adequada de todas as escalas, mas ao menos as situações nos forçam a modificar e variar algumas escalas. Quando nos acostumamos a ver tudo do ponto de vista da reflexão do nosso perfil pessoal (o ‘eu médio’), nos tornamos cada vez mais incapazes de dimensionar coisas fora da nossa escala. E num momento em que o mundo está cada vez mais conectado, que cada vez mais as coisas são noticiadas e descritas, isto significa que mais e mais tragédias vão ser visibilizadas. Todo momento terá uma tragédia. O problema é que a banalização das tragédias não acontece apenas por conta dos relatos se multiplicarem indefinidamente. O fato de que estamos cada vez menos habituados a sair das nossas escalas, acelera ainda mais esse processo de banalização pelo simples fato de que a maior parte das tragédias não nos diz respeito. Ou seja, a menos que elas aconteçam conosco (ou contíguas a nós) — nesse caso elas serão tudo e não existirá nada fora disso.